quarta-feira, 4 de março de 2015

Mulheres gostam de vinho branco

Você não me contou como foi ontem?
Paula continua passando o batom em frente ao espelho do banheiro.
Foi um bom começo, não? Ele lhe convidou para tomar um vinho.
Não, Danuza. Ele me convidou para tomar um vinhozinho – diz forçando o diminutivo-  para aproveitar esse friozinho.
Não seja exigente. Faz parte do imaginário carioca: frio e vinho, mesmo que o frio não dê nem para botar um casaco e o vinho não seja lá feito de uvas.
Depois de passar duas horas num engarrafamento monstro, tentando chegar na Barra, cheguei ao restaurante louca para fazer xixi. Sabe o que ele fez?
Não deixou você ir ao banheiro?
Não. Porque você sempre fala umas coisas sem nexo? Ele pediu o vinho branco mais caro da carta de vinhos, que eu depois conferi .
E qual é o problema?
Além de sequer querer saber a minha opinião, minhas preferências ou o que vou comer para saber que vinho pedir, demonstrou o pior dos defeitos: ele é daqueles que acha que vinho branco é coisa de mulher.
Porque essa conclusão?
Pela frase feita “Pedi para você. Tenho certeza que vai gostar.”
E qual era o vinho?
Quarts de Chaume. 2006. Domaine Baumard.
Bom. Aliás, muito bom. Boa escolha.
Escolheu pelo preço tenho certeza. E porque era vinho branco.
Danuza, isso não chega a ser um defeito. No máximo, uma ignorância de que só o que é caro é bom. Com certeza, tem menos chance de errar. E, ele pode gostar de vinho branco.
Não gosta. Diz que só bebe tintos. Deve ter lido em uma pesquisa de estilos que a masculinidade está associada a ingestão de vinho tinto. Foi só o garçom me servir que pediu outro vinho: um tinto australiano.
Bem isso levou quanto tempo? 10, 20 minutos? E o resto do jantar valeu a pena? Ele tem bom papo? Não dizem que nós mulheres somos auditivas: uma boa conversa e tudo está resolvido?
Ele até que tem um bom papo. Falamos de vários assuntos. É um pouco convencido, mas dá para conversar.
Então, apesar dos percalços iniciais, valeu?
Foi o que eu também pensei, Danuza, até a primeira gargalhada.
Paula ergue os olhos em silêncio, demonstrando que dessa vez não conseguiu traduzir a ideia.
Sabe aqueles tipo de homem que ri alto de suas próprias histórias, supostamente engraçadas, para parecer que é super feliz?
É. Isso não dá para superar.
Nem com vinho bom!


Beber para esquecer... ou para lembrar?

Eu preciso beber!
Ato contínuo, Paula abre a pequena adega de Danuza. Olha para as garrafas parecendo procurar  alguma coisa. Danuza observa.
Preciso relaxar e esquecer o dia de hoje.
Então é melhor dar uma corrida.
Quero relaxar sem esforço. A corrida não serve.
Já sei o que você precisa! Alta graduação alcoólica. Vou pegar uma vodka artesanal que eu ganhei há alguns anos.
Paula ignora Danuza e pega um vinho da adega.
Não quero vodka. Quero esse vinho: Quinta da Pellada.
Danuza tira bruscamente o vinho das mãos de Paula, que olha para a amiga indignada.
Vou escolher outro. Esse vinho não é para relaxar.
Sim. Vinho é para beber... com os amigos. Não é o que Mário Quintana dizia.
Não é exatamente o que ele disse sobre vinho e amigos. Mas esse vinho... é diferente. Para uma ocasião especial.
Paula faz uma expressão de interrogação de quem espera uma explicação.
Sabe, Paula, você pode descrever um vinho, falar sobre como harmonizam com determinados pratos. Mas esse vinho, o Quinta da Pellada, me apresentou uma outra possibilidade ...com esse vinho você só tem vontade de beber. Mais nada. Sem avaliações, comparações, notas. A cada gole você vai sendo transportado para Portugal. Não como um turista, mas como parte do cenário onde ele é consumido.
Você andou bebendo enquanto folheava aquele catálogo de vinhos de novo?
Danuza, resignada, concorda.
Resumindo: toda essa poesia é para dizer que você não vai desperdiçar um vinho memorável comigo.
Hoje não.
Paula suspira.
Bem, onde está a tal vodka artesanal?
Danuza aponta um armário. A garrafa de vodka está entre a água sanitária e o removedor de gordura.
Porque você guarda a garrafa junto com o material de limpeza?
Danuza não responde.
Paula pega a garrafa e tenta decifrar o rótulo, como faz com as garrafas de vinho.
O rótulo é mimeografado?
Produção caseira. Um presente que ganhei.
De artesanal virou caseira... Quem lhe deu essa garrafa, Danuza? Aliás, por onde você andava antes de começar a beber vinho?
É melhor não saber.

Vinho: lubrificante do cérebro

Era um daqueles eventos em que agradeci o som alto para não ter que conversar. Não havia o que dizer, não estava disposta a pensar em algo que desencadeasse uma conversa, estava entediada. Enfim, estava torcendo para o tempo passar e ir embora. Era isso que meu cérebro, em letargia, me convencia que era verdade. E para passar o tempo e manter boca e mãos ocupadas me dedicaria a comer e beber o que me fosse oferecido. Por isso, quando o garçom ofereceu o espumante eu aceitei. Uma das pessoas do pequeno grupo ao qual estava, de alguma forma agregada, com sua recém servida taça de espumante, levantou um brinde ao lubrificante do cérebro. Era a primeira vez que ouvia tal expressão para o vinho. Resumia com simplicidade o que eu sentia diante de uma taça de vinho. E com o cérebro lubrificado pelos primeiros goles de espumante, entrei na conversa, deixando que o vinho me fizesse falar. E falamos de muitas coisas, até de vinho. No final da noite, percebi que vinho combina/harmoniza mesmo é com gente.